A epopéia são-paulina é rica e mística. Descobrir a história do maior clube da América é um prazer inigualável, contar a história desse gigante glorioso é mais que um prazer, é puro êxtase.
O São Paulo FC tem história e pré-história, já o disse aquele que escreve estas linhas. Há mitos e lendas na pré-história do São Paulo e há lendas e mitos em sua história propriamente dita.
A saga tricolor tem início quando seu ancestral mais remoto, o Clube Athlético Paulistano, resiste ao profissionalismo no Futebol. Não era adequado aos lordes de nossa sociedade competir por dinheiro. Para os dirigentes do Paulistano, o Futebol era um mero esporte, como outro qualquer; jamais a Direção do clube da elite da capital paulista iria assalariar alguém para que vestisse a sua camisa sagrada. Para o Paulistano o que importava era competir, o resultado não interessava, pagar alguém para que se esforçasse pelos louros da vitória era sacrilégio!
O Paulistano disse não ao profissionalismo e alguns de seus sócios apaixonados pelo Futebol disseram não ao Paulistano. Houve uma pequena insurreição, os revoltosos queriam continuar a torcer, quem ama o Futebol não vive sem ele. O Paulistano era nesse esporte o maior vencedor de títulos de São Paulo. Para que se tenha uma idéia, desde a sua fundação havia sido campeão paulista em 1905, 1908, 1913, 1916, 1917, 1918, 1919 (único tetra do estado até hoje) 1921, 1926, 1927 e em 1929, ano em que tomou a resolução fatal. A solução de continuidade dessa rota exuberante de glórias era um crime lesa-futebol! Então os dissidentes ousaram fundar um sucessor para o Paulistano. Seria mantida a fleuma aristocrática do tradicional torcedor do clube dos Jardins, criar-se-ia um nome para a nova agremiação que evocasse a memória da cidade e do estado dos bandeirantes e as cores do Paulistano seriam conservadas. Os revolucionários eram contados em pequeno número mas a sua valentia era de uma legião capaz de fazer guerra ao mundo. Entretanto tudo não passava de uma idéia. Não havia campo para treinar, não havia sede para administrar, não havia jogadores para jogar, não havia camisas para usar, não havia torcida para aplaudir. E o tempo era curto. A primeira providência foi convencer os próprios craques do Paulistano a irem jogar no novo clube. Que clube? O clube que os revolucionários iam criar.
Os inconformados bateram à porta da Associação Athlética das Palmeiras, esse clube existia, tinha tradição, mas era em verdade, naquela ocasião, um corpo sem alma. A A.A. das Palmeiras fora criada em 1.902, dois anos depois da criação do próprio C.A. Paulistano. Dedicava-se naqueles dias quase que exclusivamente ao Tênis e, quase que imperceptivelmente, ao Futebol. Mas tinha sede, tinha camisas, tinha quadras e tinha minguado número de associados. Sobretudo, tinha campo, era dona do campo da Floresta e esse campo, o melhor da época em São Paulo, era muito importante para a consumação daquele projeto onírico. A A.A. das Palmeiras estava endividada, corria o risco de perder tudo. Tinha jogadores de Futebol? Tinha. Mas eram fraquinhos, praticavam o esporte pelo esporte, sem nada de grande ou de excepcional almejar.
Ora, a tentação de ver os craques maravilhosos e campeoníssimos do CA Paulistano envergando aquelas camisetas já sem brilho e sem objetivos foi o móvel usado pelos rebeldes para convencer os comandantes daquele clube a integrar o sonho impossível. A perspectiva da glória também abre corações. Do encontro das agruras e dos sonhos comuns daqueles visionários fez-se a realidade e nasceu em 1930 o São Paulo da Floresta que ao vermelho e branco das cores do Paulistano adicionou o preto do alvinegro da A.A Palmeiras, dando vida às três cores da camisa que tanto amamos. Com essa estrutura e com o manto que seria o mesmo para a eternidade, o São Paulo da Floresta disputou seu primeiro certame paulista em 1931 e com os ex-craques do Paulistano deu um verdadeiro show nos rivais sagrando-se campeão absoluto daquele ano, sob o comando de Arthur Friedenreich, o primeiro Pelé da história do Futebol. Estava apenas começando a epopéia.
A façanha do primeiro ano ainda guardava ares de amadorismo. Os jogadores quase nada recebiam, havia a vontade de mostrar ao Paulistano que o futebol profissional era viável, até os próprios torcedores do Paulistano apoiaram o início das atividades daquele clube que consideravam um filho. Mas a partir do ano seguinte tudo mudou. Os craques queriam ganhar mais, o clube precisava crescer, era preciso angariar fundos para gerir o sonho. Os torcedores do Paulistano abandonaram o time, o São Paulo da Floresta começou a fazer água.
Desesperados e acostumados com a vida aristocrática os dirigentes de então resolveram comprar uma sede nova, que chamasse a atenção da nobreza. Investiram no famoso “Trocadero”, um palacete no centro da cidade que adquiriram prometendo pagar 190 contos de réis, uma verdadeira fortuna. Para garantir o pagamento uniram-se em desespero ao Clube de Regatas Tietê mas não lograram êxito. Não deu. O sonho estava acabado, não foi possível pagar a dívida e ao São Paulo, em 1934, seria decretada a pena de morte.
O São Paulo morreria? Não, pelo contrário. Iria o destino anunciar a sua imortalidade com a dramática criação do atual São Paulo FC, no ano seguinte. Já contei alhures a história da refundação. De Carmo Mecca, o primeiro presidente depois do renascimento em 1935, passando por Porfírio, por Monsenhor Bastos e por tantos outros até chegarmos ao topo do mundo. Meus iguais conhecem muitas lendas da história e da pré-história daquele que seria depois proclamado o clube “Mais Querido da Cidade”. São muitos os vultos que construíram a sagrada sãopaulinidade, forjada a ferro e a fogo, com suor, lágrimas e glórias eternas.
O São Paulo FC sofreu muito para se firmar no cenário esportivo paulista e para se transformar na maior potência da paisagem nacional da bola e das chuteiras. Sabem todos que desde a refundação em 1935 ficamos longo período quase que à margem dos fatos, assistindo aos grandes, Palestra e Corinthians, colecionar títulos. Não éramos ninguém, éramos onze camisas e o sonho original, que não morria.
Durante esse período de humilhação muita história se colheu. O melhor da história é forjado sob as chamas do sofrimento. Manuel Raimundo Paes de Almeida fez história, Paulo Machado de Carvalho fez história, Cícero Pompeu de Toledo fez história assim com Laudo Natel, Roberto Gomes Pedrosa e tantos outros. Quando Leônidas da Silva chegou, em 1942, o São Paulo proclamou ao Brasil que queria ser grande. Para acompanhar Leônidas, Décio Pacheco, o presidente de então, que também fez história, trouxe uma plêiade. O São Paulo transformou-se em um time de astros de primeira grandeza e foi enfrentar seus temíveis fantasmas no campeonato daquele ano. Mas perdeu.
Então os grandes, Corinthians e Palmeiras, ironizaram: pequenos não ganham títulos! O São Paulo insistiu. Em 1943, montou quase que uma seleção. A Federação Paulista de Futebol marcou a tradicional reunião dos clubes para a formatação do campeonato estadual. Estavam todos presentes, os representantes dos clubes do interior, os representantes dos clubes da capital, os diretores da própria FPF e a imprensa, em peso. As emissoras de Rádio transmitiam ao vivo, não havia Televisão.
Desde que eu era criança ouço essa passagem emblemática. Curioso é que cada um que a conta troca o personagem central. Já ouvi que o representante do São Paulo na célebre reunião era Paulo Machado de Carvalho, já ouvi que era Cícero, já ouvi que era Porfírio, me contaram que era Monsenhor Bastos, outros trazem a versão de que era o próprio presidente Décio Pacheco. Esse acontecimento virou lenda, esse episódio é um dos mais marcantes da história do São Paulo e da história do futebol paulista. Eu não poderia deixar de repetir aos meus iguais esse “flash” legendário, esse verdadeiro versículo bíblico de nossas tradições, que deve ser obrigatoriamente passado de pai para filho entre os são-paulinos, até o final dos tempos.
Terminara a reunião na FPF, a reunião solene e concorrida a que eu me referi linhas atrás. A tabela estava pronta, o regulamento estava aprovado. Ia começar o grande campeonato paulista, o maior da história, segundo se apregoava. A imprensa foi convidada a entrar no salão nobre. Ali os dirigentes passaram a conceder intermináveis entrevistas. Os representantes de Palmeiras e de Corinthians não bastavam para tantos microfones e para tantas perguntas.
Quem entrasse hoje pelo túnel do tempo na solene sala de reuniões da FPF naquela noite festiva e inesquecível iria ver sentado impassivelmente em um canto, esquecido pelas luzes, um homem longilíneo, um senhor de olhos fundos, de ares fidalgos e de gestos nobres e discretos. Esse homem tinha mais de cinqüenta anos, tinha cinqüenta e um, para ser preciso. Fora aquele homem o primeiro paulistano a associar-se ao recém-fundado São Paulo FC, subscrevera a ata de criação do Clube da Fé, em 16/12/35. Além de sócio nº 1, nosso personagem fora presidente do clube, em 1936 e em 1937. O São Paulo o designara como seu representante para aquele ato. Os repórteres pediram ao homem que se juntasse aos representantes de Corinthians e de Palmeiras para as entrevistas, ele se levantou e postou-se sem fazer alarde ao lado dos coirmãos.
Mais de quarenta minutos se passaram e as perguntas eram dirigidas apenas ao diretor palmeirense e ao enviado corintiano. Ambos trocaram todas as farpas possíveis e se desafiaram até não mais poder diante dos microfones. A questão era a de saber quem seria o campeão paulista de 1943. Corinthians ou Palmeiras? O debate era renhido, encarniçado, o tempo passou e se esqueceram do nosso personagem são-paulino, a ele nenhuma pergunta era dirigida.
Os programas radiofônicos, transmitidos ao vivo, como se falou, estavam terminando, estava empatada a batalha entre os grandes, cada um alinhando motivos suficientes para concluir que o seu time seria o campeão.
Então, um repórter espirituoso, para terminar as hostilidades, sacramentou: -“Bem, senhores, não há como saber quem, entre Palmeiras e Corinthians, será o campeão paulista. Sugiro que resolvamos o impasse no jogo da moeda. Jogarei a moeda ao alto, se der cara, é porque ganhará o Corinthians, se der coroa é porque ganhará o Palmeiras”. Todos riram e saudaram aquela forma educada e sutil de acabar com a briga estabelecida. Mas antes de jogar a moeda e, lembrando-se do representante do São Paulo que ali estava e assistia a tudo com grande paciência, o repórter, para dar ensejo a que ele falasse pelo menos duas palavras perguntou-lhe: -“E o representante do São Paulo o que acha que vai acontecer? A moeda cairá com a face voltada para a cara ou para a coroa?” E o nosso homem, com sua indefectível educação e com uma serenidade que fez corar os rivais briguentos respondeu sorridente: -“A moeda não cairá voltada para a face cara e tampouco cairá voltada para a face coroa, a moeda cairá pela primeira vez em pé e o campeão será o São Paulo FC!”
O homem a quem o ajuntador dessas modestas palavras se refere seria ainda o Presidente do Conselho Deliberativo Tricolor de 1946 a 1949, seria o Vice- Presidente do clube em 1954, em 1958 integraria a Comissão Pró-Estádio, criada para planejar a construção do Morumbi. De 1962 a 1972, ele seria eleito sucessivamente membro do Conselho Deliberativo. Até a sua morte, nosso personagem permaneceu a serviço do São Paulo FC, sua maior paixão. Figura absolutamente inesquecível na vida do Tricolor ele recebeu o título honorífico de Presidente Benemérito do São Paulo FC.
Seu nome: Frederico Antonio Germano Menzen, mais conhecido apenas como Frederico Menzen, o homem que trouxe o goleiro King e o eterno treinador Vicente Feola para enriquecer nossas glórias.
Não é preciso dizer que no ano santo de 1943 o São Paulo conquistou o seu primeiro título paulista. A torcida então, em frenesi jamais visto, atravessou a cidade em imenso corso, que tinha como abre-alas uma descomunal moeda em pé, simbolizando a façanha.
Frederico Menzen se imortalizara. Havia protagonizado uma das mais místicas histórias do mundo da bola.
Ave, eterno são-paulino, Frederico Menzen!
Dr. Catta-Preta é advogado e são-paulino antoniocattapreta@yahoo.com.br
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